7/18/2022

O tempo não passou por mim

parece que o tempo não passou por mim

deixou-me ausente e adormecido num sem fim

entre gente e lugares que me arrastaram por aí

em carrosséis de cores e sentimentos padeci

usei o corpo para me proteger das agressões

vivi ilusões que me trouxeram o amor e o fel

conheci memórias que me induziram a pensar

achei o mundo acanhado e carente do seu mel

olhei as casas apreciei as paisagens e o mar

fiz amizades que não duraram para sempre

não consegui esquecer a miséria presente

por vezes afastei-me para não ter de chorar

cheguei a achar que podia ser quase feliz

não fosse o vento e a chuva levarem o que quis

tornei-me um guardião dos meus sonhos

um arauto das palavras e das poesias vãs 

dediquei a minha vida aos confins da mente

presente que diluí numa taça com vinho

sou ainda um pássaro em busca do seu ninho

que sobrevoa as nuvens e finge que sente


Mongiardim Saraiva 



 


Em nome dos deuses

A humanidade sempre criou os seus deuses para justificar boa parte da sua ignorância, ao atribuir a uma entidade divina a responsabilidade de arquitetar o plano e a explicação para a sua origem como espécie e na formação do universo, à luz da sua própria imagem e da sua limitada condição. Assim, construiu templos, passou a visitá-los e a venerá-los, dedicando-se fervorosamente às liturgias e práticas religiosas, tornando-as uma referência respeitada e um atributo dos bons e velhos costumes. Essas práticas, desenvolveram grupos e facções organizadas que viram nesse propósito a oportunidade de se constituírem como entidades avalizadas, respeitadas e bem aceites pela sociedade, quase sempre orientadas no intuito de fortalecer um grupo social e seus objetivos que muitas vezes contrariavam na prática os valores e as origens desses ensinamentos. É comum observar-se que essas organizações pregam nos seus templos a palavra da salvação e outros ensinamentos que conferem aos grupos uma espécie de aura santificada e promessa de proteção que funciona como um reconhecimento divino e serve também para que os pastores possam controlar os seus rebanhos que, para esse efeito, devem obedecer fielmente à palavra anunciada e seguir os dogmas. No entanto, é comum observar que, na maior parte das vezes, a prática social dos crentes não corresponde minimamente a essas doutrinas, o que faz com que sejam observadas condutas e posturas que desvirtuam os valores sociais como um todo. Assim, a humanidade parece caminhar cada vez mais para uma grande falácia ligada à moral, ao grupo social e às instituições, responsável pela má formação dos seus congêneres e dos jovens que herdam como testemunho um modelo obscuro, sombrio e muito pouco esperançoso. Reparemos na realidade brasileira contemporânea, em que muitos grupos religiosos seguem cegamente o seu líder político religioso como se fosse uma representação viva do seu deus são favorecidos e amparados por ele como moeda de troca comercial e garantia de voto. Essas pessoas que idolatram o seu deus, são orientadas a seguir práticas de conduta que servem os interesses de um grupo soberano que pretende sobretudo o fortalecimento de um estado absolutista e prepotente, mas que parece não se importar com quem é necessitado e padece sem as condições mínimas de sustentação e dignidade. O hipotético e legítimo papel desses "deuses" que seria o de trazer alguma luz e esperança para problemas que afligem a humanidade, encontra-se cada vez mais obscurecido, decadente e esvaziado por aqueles que, em seu nome, deturpam a sua imagem, destroem, matam, cometem atrocidades e são frios e displicentes para com aqueles que vegetam em busca de melhores dias. A humanidade exclui-se assim do seu papel ativo (em nome de deus), sensato e responsável nas questões que lhe dizem diretamente respeito, nos seus compromissos e nas suas atitudes, para se esconder atrás de um falso deus misericordioso (fruto da sua imaginação, ignorância e covardia), piedoso e benevolente no seu propósito maior de criar, elevar, orientar e resolver as questões humanitárias. À espécie humana, apesar de todo o avanço tecnológico e da ciência, fica relegada essa tremenda mancha atribuída à sua conduta e aos seus erros, às suas negligências e mentiras que ousam, de alguma forma, justificar a sua imensa ganância, maldade e declarada insensatez. 


Mongiardim Saraiva          

Transmutação

ultimamente sinto-me cada vez mais longe

como uma folha levada pelo curso do rio

entre pedras e taludes da natureza rara

uma mistura de distanciamento e frio

que aumenta a certeza que nos separa

só o murmurar das águas me seduz e embala

magia que me segura à raiz da minha fala 

entre os limbos dos canaviais do meu ser

deixei de ver margens mas ainda as sinto

como braços que me querem ter e agarrar 

o leito é liso e sinto o meu corpo a deslizar

dissolvendo-se na espuma impiedosa

no turbilhão das pedras e nas asperezas

deixei para trás as saudades e as incertezas

de alguns amores que vieram me visitar

agora sigo apenas nessa doce correnteza

certeza de não ter mais nada para recordar


Mongiardim Saraiva 

   

 

Egrégora

tessitura fina quântica e entrelaçada

que tece a teia do universo infinito

traz-nos a luz no amor sem ter nada

como na origem e no final de um rito

faz-nos renascer em nós como teus

destinados à empatia rica da união

agrega-nos a sabedoria da missão

mesmo sem criarmos o nosso deus

impregna-nos do teu pó uno e sideral

usa-nos na tua elevada frequência

como artífices do teu plano real

ensina-nos a amar a permanência

em um estado de amor graça e luz 

faz com que não usemos a guerra

que tanto nos incapacita e reduz

age como uma egrégora do perdão

e anuncia uma nova vida sem cruz

leva-nos contigo por essa imensidão

para que possamos te compreender

através das partículas que somos de ti

essência do lindo amor que nos quer

para sempre agregados junto a si


Mongiardim Saraiva 


    

  

Dentro do teu poema

estou dentro do teu poema

com luvas macias de veludo

e adereços para cada fonema

quero dizer-te quase tudo

o que me deixa petrificado

no teu olhar brando e mudo

que amacia todo o meu tema

sou suspeito porque te amo

desde o começo do teu lema

carregado de malícia e cena

ao me enviares  a tua chama

numa cama feita de ti serena

hoje faço parte do teu poema

como uma letra que te quer

adornada doce e presente

sou um arauto do teu rema

que aguarda na tua voz amena

um doce e leve suspiro de prazer 


Mongiardim Saraiva 


Transfiguração

a energia que passa através de nós

como antenas que recebem e emanam

os elementos de percepção e transformação

paira no espaço incomensurável em volta

como uma malha coesa dinâmica e entrelaçada

muito além da nossa restrita compreensão

é o mistério da origem e do propósito de tudo

o que é proveniente do universo instável e infinito

que unifica engloba e divide todas as coisas

um movimento perpétuo fora e dentro de nós

que provoca cisões discórdias opiniões e fantasia 

que nos arrasta para um turbilhão de emoções 

e reduz o nosso pensar à vil e só incerteza

a nossa realidade parece ser a interdependência

que nos mostra claramente que nos pertencemos

uns aos outros como elo vital e transcendente

e que só assim poderemos evoluir e escapar

das garras de um universo que nos ama e sacode

com exigência empatia amor rigor e propriedade

energia que não podemos ignorar e desperdiçar

se quisermos viver para superar o nosso mistério

isso pode acontecer dentro de nós e é de cada um

através de um canal próprio de vida e comunicação

que possa transfigurar a energia que existe em volta

capaz de criar e perpetuar um novo ciclo de união


Mongiardim Saraiva  




 

 

Distanciamento

não consigo mais te abraçar

pessoa que passas por mim sem olhar

nos meus olhos que te deram vida

como posso te abordar com simpatia 

se usas apenas o faro e a tua audácia

procuras o que eu possa te vir a dar

na sombra daquilo que fomos um dia

distanciámo-nos sem haver distância

já não te sinto por perto do que fomos

e desejámos ser desinteressadamente

vejo-te apenas como um vulto só

que caminha triste em minha direção

na pobre intenção de me enganar

coração cansado e seco sem amar

como irei sobreviver daqui em diante

se houver muitos outros como tu

para cruzar o meu longo caminho 

vou ser talvez o homem mais sozinho

e ciente do meu presente vil e cru  

para não ter de fingir ao abraçar

alguém que evita o meu olhar


Mongiardim Saraiva 


 




 


Concerto para dois violinos

choro pianíssimo e carregado

na atmosfera crua e vazia

onde a névoa se dissipara

e dois violinos surgiam sós

na planície húmida e enfeitada

essência de uma vida presente

cânticos suaves nus e idolatrados

sons agudos e espirais sem fim

graves prelúdios de pouco sol

subjugados pela madrugada 

agora transparente e muito clara

acima do meu horizonte tangente

como pássaro prodígio sem dono

sobrevoei a minha mente clara

em voos serenos curtos e rasantes

açoitado por notas de cristal

a atmosfera movia as entranhas

e os auspícios do sagrado latente

zelo e luz em alegria dormente

na gávea do meu mastro sagrado

atento às gaivotas roucas e de prata

que salpicavam o mar à minha volta

escutei outra vez o som dos violinos

que me puxava para dentro de mim

em notas de mel e fel como naus

vazias e confinadas ao doce infinito

refletiam o nascer de muitas vidas

dedicadas ao brilho de uma lua acesa

ia começar a festa de mais um dia 

candeia da minha alma segura e coesa 


Mongiardim Saraiva 

Inside

 o estalo do meu chicote

acorda a minha mágoa

que desliza por dentro de mim

como uma gárgula que assusta

e me entristece quando sorri

em trejeitos diabólicos e crus

cava sulcos na minha carne

e deixa transparecer quem sou

criatura vil que se esparrama

no vazio de uma cova que cava

aos poucos cheia de migalhas

ou às vezes saturada pelos restos

que apodrecem dentro de mim

preciso desse pesado castigo

para que possa acordar aos poucos

livre de quase todos os meus medos 

e preparada para te ouvir respirar

junto a mim como um irmão

quero sentir-te aprofundado

ramificado impregnado pesado

e avassalador como te criei

que possa sempre chamar-te 

à última morada do meu ser

para me trazeres a tua vontade

e o som breve e seco do teu estalar

naquele lugar que conhecemos

onde só tu e eu pertencemos


Mongiardim Saraiva 




O rugido do tempo

O tempo urge e ruge

Como um lobo faminto

Minto se ignoro como o sinto

As suas presas enterradas

No vazio da minha carne

Trêmula e de cor branca

Agulhas ensanguentadas

Que me perfuram sem dor

Na minha corrida pela sorte

Sou como uma bala perdida

Aos ziguezagues e sem norte

Morte serena e escondida

Sacio a minha sede louca 

Na água turva das fontes 

Que me lava a garganta rouca

Tento ser como um deles

Mas não consigo correr

Estou na floresta escura

Turva sombra do meu ser

Tropeço na minha bravura

Uso a minha lança dura

Sei que tenho de morrer 


Mongiardim Saraiva 


 

 

 

7/17/2022

Campo de margaridas

Onde há flores,

Existem muitos amores

Transformados em cores,

Que inundam a montanha

Dos destroços alienados

Pela fome e pela guerra. 

Uma esperança que ondula

Pelo vale do nosso silêncio, 

Que dignifica o romper da aurora 

Em matizes de tons suaves. 

Um campo infinito de sonhos, 

Convida-nos a não esquecer

Que existe perfume e encanto,

Apesar das ruínas e do espanto.

São as agruras do sofrer

Que nos trazem vida e sorte,

Através do clamor de um campo.

Margaridas que nos abraçam 

E cantam sonhos de vida e pranto.

O silêncio é um pulsar constante, 

Feito do tempo e do vento

No confinar de um lamento.

Ausência que rasga o nosso instante,

Ao trazer-nos o beijo desse amante...


Mongiardim Saraiva

Sem metafísica

não existem mistérios

tudo é tão simples que cala

a metafísica é um jogo da mente

vil e dormente que nos embala

a terra é o celeiro da vida

que nos cria e nos dissolve

ossadas que ficam aí por ficar

o amor que achamos possuir

é a ilusão de estarmos vivos

para além da morte que somos

e do desejo de a perpetuarmos

assim não adianta criar deuses

nem sacerdotes e reis momos

apenas o respirar é quanto basta

em fluxos e refluxos de ar

que incham e desincham a carne

o ego não passa de uma cama

onde aguardamos sós e deitados

o dia em que apagar a nossa chama

mortos esquecidos e enterrados


Mongiardim Saraiva 


 

    

  




 



   

Uma rua cinzenta

uma rua cinzenta e deserta

sem artifícios e causas alheias

paz podre escancarada e aberta

casas sem cor antigas e feias

duas mesas com gente apagada

em cadeiras brancas e molhadas

pelo açúcar que escorre das taças

no sonho vil de uma vida sentada

lá vai o cachorro morto e sarnento

magro sedento e só nas alvoradas

talvez exista uma escada no céu

por onde desça às vezes um anjo

que dance as cantigas no lamento

nas quimeras e na alegria do banjo

tenho muita vontade de me ausentar

desta minha varanda fria e sem véu

vou descer aos confins do meu mar

para não ter de morrer sem ver o céu

sei que vou encontrar o meu corpo

envolvido nas algas e no sargaço

pelo manto das águas consternadas

à espera de mim que lhe pertenço

mãe que me embala no seu regaço


Mongiardim Saraiva 


Renúncia

sinto as letras desagregadas e sem norte

massacradas pela tristeza de não sorrirem

acabrunhadas ocas arredias e sem sorte

de vendavais e impropérios consentirem

por aqui a ganância cospe no prato vazio

numa mesa de pão esfarelado em migalhas

aos ricos é servida a abastança sem fastio

aos pobres é enviada a sorte numa mortalha

uma horda de matadores aclama o seu deus

que transita em atos de baixa estirpe louvados

aos que ousam contrariar a insânia do fariseu

é apontada a mira dos canhões consternados

a miséria tomou conta do país por inteiro

em forma de receitas que abonam o estado

tiranos maltratam a terra e as colheitas

em nome da soberba de um falso mercado

é tempo de escolhermos quem nos representa

em nome da vida e da esperança desejada

amadurecer a nossa alma firme e atenta

seguir o caminho da natureza sublimada


Mongiardim Saraiva 



Desinteressadamente

o desinteresse produz sonolência 

um desligar aos poucos que me entontece

que me puxa para uma zona de confluência 

como se a carne começasse a ser líquida 

e as veias vomitassem o suor de uma prece

o desmanchar das ideias é lento e sinuoso 

como um velho rio inerte entre montanhas amargas 

que lutam para se manter firmes e povoadas

ao ocaso pertence a minha súplica final

agonizante e bloqueada por miríades de estrelas

quero adormecer sem ter de recordá-las

como cardumes de prata que lutam na madrugada

sou apenas um músculo dentro de um só olho

vejo sombras que respiram em acordes finais

ouço o murmúrio das nuvens escuras e roucas

que gargalham ao longe e riem de mim

não quero desligar-me sem o consentimento da aurora

lutei muito com o tempo por esse mundo afora 

sou uma gárgula extasiada que regurgita o confim 

prefiro morrer do que ausentar-me aos poucos assim


Mongiardim Saraiva 

Afetos

que triste ter de ponderar o afeto

escolher as pessoas para poder recebê-lo

não fosse esse aspecto não haveria desafeto 

e gente que insiste em nunca tê-lo

quando me aproximo de alguém 

não posso deixar de sentir um porém 

carregado de dúvidas e de incertezas

procuro medir o que existe mais além 

como num jogo de verdades cruas e acesas

sou um fiscal nesse mundo seco e trivial

alivio a minha angústia com um café quente

faço apostas com o meu passado normal 

uso a minha miragem para me tornar ausente

insisto em segurar o meu afeto duro e total

sei que daqui a pouco tudo voltará ao normal 

sem sentir o perigo a rondar o meu presente 

o amor que transborda do meu ser é para alguém 

sei disso apesar de guardá-lo a sete chaves 

um dia transformar-se-á na espuma do vento

deixará de ser amor ou um afeto exacerbado

para pertencer à terra e aos confins do meu fado


Mongiardim Saraiva 


2/11/2021

Um brilho rarefeito



 O Natal diluiu-se numa simples taça, 

Onde todos os vestígios encontraram vida,

Decantada por um fogo de imagens raras. 

As velas derreteram e mostraram as cores;

Formas sugeridas pelo encanto e apreensão. 

Todos flutuámos naquele mar doce de vidro, 

Claro e transparente, como estátuas reféns 

Num acender e apagar sem sentido... 

Como se estivéssemos dependentes 

De um breve desfecho, arbitrário, surreal e imperfeito.

As flores teimaram em não desaparecer, 

Enquanto os reflexos das esferas do Natal 

Imanavam um brilho estelar, fugaz e rarefeito...


Mongiardim Saraiva

9/30/2020

 A Figueira

Cheguei de madrugada naquele lugar misterioso. Havia muitas camas e muitos corpos adormecidos. Fui recebido como um irmão, com simplicidade, desapego e muita fé. Trabalhei, rezei, comunguei e refleti. Fiz uma amizade. Ganhei a minha liberdade numa madrugada fria e sombria, mas promissora. Parti definitivamente em busca do meu amor.

Mongiardim Saraiva



9/24/2020

 O último abate

O velho Chico tinha o nariz adunco e mais parecia um cadáver ambulante. Naquele dia, saiu para caçar. A um estalo dos seus dedos, o motorista freou o velho Mercedes. Caçadeira por cima do vidro e dois tiros certeiros. Os cães salivavam loucamente, mas o velho Chico tombara antes daquelas perdizes. 

Mongiardim Saraiva




 O banho de enxofre

Entrei naquela banheira cheia de água, salpicada por pétalas que exalavam a enxofre. Mergulhei o meu corpo e alguns minutos depois comecei a ouvir uma voz melodiosa e muito jovem que atravessava a parede do quarto. Deslizei um pouco mais para baixo, fechei os olhos e comecei a relaxar. Extasiado, perplexo e incrédulo, pedi para que aquele momento se prolongasse como num sonho real e eterno.

Mongiardim Saraiva



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